Após três anos de casamento, tínhamos um ritmo de vida bem acelerado, eu trabalhando como chefe de plantão as sextas feiras no Pronto Socorro, operando com uma equipe grande e atendendo no meu consultório de cirurgia geral, meu esposo gerenciando o pronto socorro de outro hospital, trabalhando como médico do trabalho em um município vizinho, fazendo atendimentos domiciliares a pacientes acamados, além de estarmos começando a nos preparar para estar na linha de frente dos enfrentamentos de uma doença nova que tumultuava a saúde do mundo, quando começaram os primeiros casos de COVID no nosso Estado. Foi em meio a isso tudo que eu engravidei! De maneira inesperada, não planejada, porem desde o início muito desejada e amada.
Durante a gravidez cuidei muito da minha saúde, não ganhei muito peso, fazia atividade física leve, me alimentava bem, tomava todos os suplementos recomendados, tinha um pré-natal de baixo risco, não desenvolvi nenhum tipo de doença crônica ou alteração no colo do útero. Reduzi drasticamente meu ritmo de trabalho, abandonei os plantões na emergência devido ao contato direito com o público, reduzi meu número de cirurgias e passei a atender apenas no consultório.
Comecei os planejamentos, assim como toda mãe, com o enxoval e o quarto. Não queria estar muito precipitada, mas algo de ansiedade já batia na porta. O segundo trimestre de gestação foi o mais tranquilo, não sentia absolutamente nada, e os exames continuavam todos normais. Entretanto chegando ao começo da 27ª semana de gestação meu esposo foi diagnosticado com COVID e precisou ficar em isolamento social. Como os sintomas eram muito leves, apenas uma coriza e olhos avermelhados, e minha saúde estava muito boa, resolvemos nos isolar juntos em casa. Discuti com minha obstetra que também não viu problemas.
Durante a semana de isolamento continuei completamente assintomática, organizei meu trabalho todo de casa, desmarquei cirurgias, comecei a organizar algumas coisas que estavam pendentes do quarto da bebê. No nono dia de isolamento me senti um pouco indisposta a noite, sentia dores nas pernas e a barriga estava ficando dura, achei que pudessem ser as contrações de treinamento, porque eu já caminhava para o início do terceiro trimestre de gravidez. Contudo ao ir até o banheiro percebi que estava perdendo o tampão mucoso em moderada quantidade.
Imediatamente liguei para minha obstetra, fui realizar um ultrassom de emergência e quando constatamos que eu estava em trabalho de parto prematuro fui internada rapidamente. Comecei a receber medicações para segurar o parto, que nas primeiras 18 horas até fizeram efeito singelo, mas as custas de doses muito altas e de efeitos colaterais sufocantes para meu corpo, parecia literalmente que meu coração iria sair pela boca de tão rápido que batia, minha respiração estava ficando mais superficial e minha barriga agora ficava dura o tempo todo.
Durante todo esse momento, não sei por qual motivo, me mantive sempre calma, não chorei, não pensei no pior, não me desesperei. Mantive a fortaleza dentro de mim com forças que nem eu sabia que tinha. Diferentemente do meu marido que a esta hora já estava todo inchado de tanto chorar. Após 20 horas na tentativa de segurar o parto, já esgotada, sem muitas forças, sem conseguir comer ou dormir direito fui examinada e estava com 5 cm de dilatação. Nesse momento meu coração se dilacerou, segurei a mão do meu marido e a da minha amiga obstetra e desabei. Me sentia impotente, frágil, incapaz de segurar minha filhinha protegida dentro de mim. Nós acabáramos de completar exatas 28 semanas.
Decidimos então começar o trabalho de parto normal, e após 4 horas de longas dores minha filha nasceu, com 1060g e 37 cm. Chorou forte e veio nos meus braços por 2 minutos, o tempo de clampear o cordão e logo já foi levada até o berço aquecido onde foi intubada e levada para longe dos meus olhos até a UTI neonatal.
Nos primeiros dias, minha filha mal tinha expressão, respirava através de aparelhos, não recebia alimentação. Eu sonhei tanto com a Golden Hour do pós-parto, a hora mágica em que o bebê recém-nascido é colocado no seio da mãe para ser amamentado ainda na sala de parto. Mas infelizmente isso não aconteceu. Imaginava nossas roupas combinando quando a visse depois de nascer. E na realidade eu mal conseguia encontrar uma fralda pequena o suficiente para vestir minha filha na incubadora. Sua pele era gelada e pegajosa, tão fina que eu podia ver os vasos sanguíneos abaixo dela. Não existiam quase músculos em seu corpo, eram apenas ossinhos e a pele translúcida. Como eu tinha medo. Medo de não ver minha filha se recuperar. Medo do tempo não passar rápido o suficiente para vencer a velocidade da angústia que crescia rápido na minha mente. Medo de receber uma notícia ruim. Medo de não ter mais fé e acreditar a cada segundo que tudo ficaria bem.
Os dias foram passando rápidos para tantas pessoas, mas para mim cada hora era uma eternidade. Na UTI neonatal fui conhecendo várias histórias. Muitas mães que já viviam relatos parecidos, as vezes até piores que os meus e aprendemos a nos sustentar juntas. E parece que a cada dia novo, mais esperança e fé eu tinha. Antonella começou prontamente a receber meu colostro, no primeiro dia, míseros 1 ml a cada 3 horas, e meu corpo como uma máquina produzia mais de 200ml de ouro líquido preparado especialmente para nutrir minha cria. Me dediquei a partir de então a produzir leite e mandar ao banco de leite, assim como estudar tudo que podia aprender sobre a amamentação para enfrentar também as dores e dificuldades da mulher que amamenta. E estou para dizer que sofri mais com a amamentação do que com o parto normal.
Aos poucos fomos vencendo todas as barreiras e obstáculos, a infecção pulmonar grave, a icterícia, a imaturidade pulmonar com necessidade de suporte ventilatório contínuo, a deficiência vitamínica e nutricional, a desnutrição do nascimento, a anemia, a doença óssea metabólica, a broncodisplasia pulmonar, o sangramento no sistema nervoso central, a retinopatia devido uso de oxigênio. Enfim foram longos 58 dias de UTI neonatal.
Lá dentro eu aprendi a dar valor a cada pequeno passo da minha filha, que para tantos pais é tão cotidiano, mas para nós foi tão emocionante, como por exemplo, o primeiro dia em que pudemos pegá-la no colo, o primeiro dia em que ela respirou sem o auxílio de uma máquina, o primeiro banho, o primeiro laço que eu pude colocar em sua minúscula cabeça, escutar o primeiro choro, o primeiro dia da amamentação no meu seio, a primeira peça de roupa, e o primeiro dia sem a dependência de um monitor de frequência cardíaca e saturação de oxigênio, a primeira noite que dormimos juntas. E a cada dia que se passava, mais eu lembrava de voltar minhas orações aos céus e agradecer todas as bênçãos que eu recebia.
Hoje revivendo a história eu só consigo pensar o quanto Deus foi bondoso nos escolhendo para enfrentar esse desafio imenso. Minha filha me ensinou a ser um ser humano melhor. A valorizar mais meu tempo com as pessoas que eu amo. Uniu nossa família em fé e esperança. Nos ensinou que os prematuros extremos são os seres humaninhos mais fortes e resistentes para enfrentar adversidades e que nunca podemos desistir de sua força. Me ensinou a ser gentil com a dor do próximo e a compartilhar conhecimento com as pessoas ao meu redor. Me ensinou a ser mãe e me mostrou o maior amor do mundo e tenho certeza que ela veio ao mundo para fazer a diferença.